O próximo presidente do Brasil haverá de resgatar nossa dívida com a África.
Muita gente da minha geração haverá de lembrar as palavras iniciais do célebre discurso de Martin Luther King: ... "Eu tive um sonho".
Eu também tenho um sonho, o sonho de ver o governo brasileiro empenhado num programa sistemático de ajuda a alguns dos povos africanos de raça negra. Temos uma dívida para com eles.
É obvio que temos problemas em casa. Que existe miséria no Brasil. Que temos muito que fazer para resolver os problemas internos. Todavia, ninguém haverá de me desmentir se eu afirmar aqui, que o mais miserável dos brasileiros não deixará de sentir alguma profunda alegria ao ver o fruto de seu trabalho (seja da coleta de um lixão, seja do catar papel, seja da esmola implorada) encher a boca e o estômago de uma criança.
Meu amigo Antônio Marraco, espanhol, naturalizado equatoriano, ao descer o Orenoco numa aventura, pode testemunhar até onde vai à caridade do povo humilde brasileiro. Marraco, naqueles confins da Amazônia, precisou da ajuda e da comida de brasileiros miseráveis, negros neste caso, e emocionou-se quando o dono da "tapera" foi buscar no seu "tesouro", que não passava de uns seis objetos ao todo, e tirou dali uma lata de leite condensado já aberta e ofertou ao ilustre e necessitado viajante. Não há limites para a caridade de um pobre.
É neste sentido, que sonho com um programa de ajuda aos povos da África, principalmente daqueles que foram origem, fonte, de nossas populações negras.
Fosse possível, eu gostaria de comparar a vida dos negros oriundos da escravidão no Brasil, com a vida daqueles que ficaram "livres" na África, durante séculos como vítimas, ao sabor das explorações "livres" de outros povos. Sim, mesmo sem poder fazê-lo, quero crer que os negros no Brasil tiveram uma vida privilegiada em relação aos seus parentes africanos. Hoje, sem dúvida alguma, os negros brasileiros vivem em melhores condições que os negros africanos. Tenho ouvido as homilias feitas pelos Missionários do Verbo Divino, principalmente as do padre Léo que tem um irmão padre na África, e que dão um testemunho da condição miserável de alguns povos africanos tais como o de Ghana. Miséria sem perspectiva de solução.
Quando penso em nós, elite brasileira, que comeu dos grãos, frutos do trabalho de mãos negras, que deitou em limpos lençóis e cheirosos travesseiros cuidadosamente passados por mãos negras. Que adoçou sua vida com o açúcar da cana plantada por mãos escravas. Nós que tivemos nossas casas elevadas tijolo a tijolo por negros, mulatos e cafuzos, e uma vez concluídas as nossas casas e as cidades, foram protegidas por mãos negras, nas corporações militares e policiais, não podemos enquanto elite, e povo, omitir ajuda às crianças africanas.
O próximo presidente do Brasil, ao contrário deste, que privilegia capitais em detrimento dos homens do trabalho, haverá de nos envolver em programas de produção de socorro material aos povos africanos e vizinhos. Não riam, pois em minha vida profissional, não foram poucas as vezes que vi indivíduos, famílias e empresas saírem da miséria financeira ou moral em que viviam quando conseguiram ver que havia outros problemas além dos próprios. Quando passaram a colaborar com a amenização da dor alheia em vez de exercitar a própria. Quando trabalharam para a solidariedade e não para o egoísmo auto-centrado.
Ajudar os negros não é esta tolice de "valorizar" a música, a umbanda, a quimbanda, as mulatas, a "cultura" negra. Ajudar o negro, aqui e na América do Norte, é dar-lhe a chance de nos ajudar, e ajudar os seus irmãos de cor, e por nós e por seus irmãos de cor ser ajudados em condições de igualdade e dignidade. É permitir a conscientização e aceitar a nossa origem comum como homens, origens naturais e sobrenaturais, e ver do coração e da fé, os três Reis Magos, reis e representantes das três raças fundamentais, representantes de todos os homens dotados de dignidade e sabedoria, ajoelhados aos pés do menino Jesus, não por temor, mas por amor.
Meu sonho é ver o próximo presidente empenhado num ato de amor em ajudar, com a nossa colaboração de povo, as crianças de nossos irmãos africanos que morrem de inanição num grunhido de dor espantoso.
Wallace Requião de Mello e Silva (1996).